Felipe Jatahy, Felipe Rocha e Ramiro Monarcha
Na ótica da economia clássica, ao estudarmos a relação entre inflação e desemprego, a principal teoria que vem à pauta é a curva de Phillips. Desenvolvida pelo economista Albam William Phillips, a curva indica uma correlação inversamente proporcional entre inflação e desemprego. O racional disso é simples, e parte da dinâmica de oferta e demanda. Diante de um maior desemprego, a demanda da economia tende a diminuir, pois algumas pessoas passam a consumir menos. Por conseguinte, supondo uma oferta constante, a escassez de demanda faria com que os preços diminuíssem, causando uma deflação. O raciocínio contrário também se aplica. Sem dúvidas essa dinâmica é teórica, e certas vezes acaba não funcionando na prática.
Em abril de 2020, observamos uma surpresa nos dados do payroll americano. Com a pandemia do coronavírus, um enorme choque de demanda aliado aos fechamentos de estabelecimentos fez com que o desemprego aumentasse para 14% nos EUA. Entretanto, o governo americano acreditava que a grande campanha de vacinação faria com que esse indicador voltasse ao patamar pré-pandemia ainda em 2020. As estimativas sugeriam que haveria mais 1 milhão de empregos gerados, porém quando os dados saíram, apenas 266 mil novos empregos tinham sido reportados. Pela curva de Phillips, imaginaríamos que esse fator deveria garantir uma inflação abaixo do esperado, visto que o mercado estimava um nível de emprego maior do que o observado.
No entanto, observamos um efeito contrário, onde esses dados de emprego abaixo das expectativas geraram uma pressão inflacionária ainda maior. O principal causador disso foi a reação do governo americano às dificuldades impostas pelas restrições da Covid-19. Observou-se ao longo de 2020 um montante de estímulos fiscais nunca antes visto. Trilhões de dólares foram injetados na economia americana e a população recebia dinheiro em mãos via auxílio governamental todo mês para arcar com as dificuldades financeiras geradas pelas restrições impostas pela pandemia. Essa ajuda fez as pessoas passarem a exigir um valor superior ao dos auxílios para deixarem suas casas para começarem/voltarem a trabalhar. Como consequência, os empregadores precisam elevar os salários, visando aumentar a oferta de trabalho e, logo, evidenciou-se um maior custo para as empresas, que, por sua vez, causou uma inflação de preços.
Ademais, vale comentar sobre outros fatores importantes da postura econômica do governo americano que também influenciam e trazem questionamentos sobre essa dinâmica. Durante a crise de 2020, além dos grandes gastos com os estímulos fiscais, houve também uma grande injeção de dinheiro através da política monetária americana. Com o intuito de estabilizar os mercados financeiros durante a baixa de preços ocasionada pela insegurança da crise, o Fed acionou a política de Quantitative Easing (QE), que é a compra de títulos da dívida para garantir uma maior liquidez. Essa política realmente ajuda no maior equilíbrio dos mercados durante a instabilidade de uma crise, mas também gera uma maior pressão inflacionária pelos maiores gastos e pela maior oferta de moeda.
Diante desses fatores, entendemos que realmente existe uma pressão inflacionária na economia atual. Vivemos um cenário econômico nunca visto antes, onde vemos a predominância da incerteza sobre os reais efeitos que tais políticas gerarão no futuro próximo. Visto isso, é de suma importância tentarmos entender qual o grau de perpetuação que esse risco inflacionário pode tomar.
É difícil pensar que após tantos acontecimentos e feitos inéditos que geram pressão sobre a inflação, o governo tenha a plena capacidade de deixar os juros reais nesses patamares por tanto tempo. É fato que desde 2008 a inflação americana anda abaixo da meta e que o Fed tem o intuito de fazer uma média histórica para alcançar o seu desejo de pleno emprego. Mas a incerteza e dificuldade que se pode ter como consequência desses atos atribuem o grande medo atual.
Além disso, com todos os estímulos fiscais e monetários feitos pelo FED na economia, olhamos com apreensão para o modo como a autoridade monetária americana irá por fim neles. Será difícil para o FED controlar uma possível inflação, retirando e/ou reduzindo os estímulos monetários sem afetar a economia real.
O ano de 2008 foi um marco para a maneira de se fazer política monetária. Até então, os instrumentos mais comuns eram os mais ortodoxos; no entanto, devido à proporção da crise do subprime, o FED e os grandes bancos centrais do mundo começaram a se utilizar de instrumentos mais alternativos. Como as taxas de juros ao redor do mundo já estavam muito baixas, as políticas monetárias convencionais não eram mais tão efetivas e, portanto, políticas como Quantitative Easing e remuneração do compulsório ganharam relevância.
Em 2021, com toda a mudança no meio de se fazer política monetária e com os novos instrumentos introduzidos, talvez o FED tenha dificuldade de controlar a inflação americana sem afetar a economia real.
Isso deve ocorrer devido, justamente, à mudança ocorrida em 2008. Atualmente, os juros pagos às reservas compulsórias dos bancos se tornaram um mecanismo de condução da política monetária americana mais importante do que a própria Federal Funds Rate. Desde de 2008, o total de compulsórios no FED cresceu de US$2 bilhões para US$3.8 trilhões em 2021. Além disso, o FED se tornou um dos maiores detentores de títulos de dívida americana, logo, o seu impacto sobre a demanda, yields e preços desses ativos aumentou bastante. O total de treasuries acumulado no balanço do FED saiu de US$500 bilhões, em 2008, para US$5 trilhões em 2020. Para ter noção da magnitude dessa posição, 18% de toda a dívida pública americana está no balanço do FED.
O presidente do Banco Central, Jerome Powell, apesar de ter dito que a inflação não está descontrolada e que ele tem as ferramentas necessárias para combatê-la, sabe que está com poder restrito. Devido à quantidade de títulos de dívida americana sob posse do Federal Reserve, um movimento errado pode gerar caos no mercado financeiro global. Em abril, Powell assumiu o compromisso de continuar com o programa de compra de US$80 bilhões de treasuries todos os meses e manter a taxa de juros perto de zero. O mercado irá reagir rápido a qualquer pequena mudança de estratégia. Portanto, provavelmente a taxa de juros americanas se manterão inalteradas até 2023, mas ela, como anteriormente mencionado, já não é tão eficiente quanto a taxa de remuneração dos compulsórios.
Caso o FED decida controlar a inflação aumentando a taxa de remuneração dos compulsórios, ele poderia afetar a recuperação econômica americana. É de se esperar que os bancos tenham mais incentivos para aumentar a quantidade de dinheiro em reservas compulsórias do que para fazerem empréstimos a terceiros. O grande problema reside no fato de que os principais afetados pela menor quantidade de empréstimos são os pequenos comerciantes e produtores que dependem de tais linhas de financiamento para manterem seus negócios ativos.
Um processo que vem ocorrendo desde 2008, com mudanças na maneira tradicional de se fazer política monetária e um aumento gigantesco no balanço do FED, colocou o mais importante banco central do mundo em xeque-mate. Esse cenário pode vir a ocorrer caso a inflação venha a se materializar nos EUA, porém ainda não é claro se esse aumento no nível de preço veio para ficar. Na verdade, há bons motivos para acreditar que a inflação pode ser passageira.
Três pontos principais indicam que vivemos uma uma inflação temporária: a relação do elevado hiato do produto (diferença entre PIB e PIB potencial), a tendência de desaceleração do crescimento do crédito na China e os históricos de inflação no curto prazo após choques negativos de demanda.
Há alguns anos se observa a economia americana rodando abaixo de seu PIB potencial, o que é um dos principais fatores para a inflação ter andado abaixo da meta por todo esse tempo. É difícil acreditar que depois de todos os efeitos causados pela crise de 2020, o hiato do produto reduza ao nível de pressionar a inflação a andar acima da meta por tanto tempo.
Outro fator relevante é a pressão dos preços das commodities influenciado pela economia chinesa. A China, como o maior consumidor de commodities do mundo, tem um grande poder sobre tais preços. Os estímulos de crédito via política monetária expansionista e os gigantes investimentos em infraestrutura na China geraram uma inflação nos preços desses ativos nos últimos tempos. Apesar disso, tudo indica que esse forte ciclo de crédito está desacelerando o que, consequentemente, traria uma correção nos preços de commodities, aliviando consideravelmente a inflação americana.
Por fim, um dos grandes motivos para não se acreditar na persistência da inflação são os históricos do comportamento de preços após choques na cadeia de produção. Em geral, depois de um choque negativo de oferta, como o ocorrido em 2020-21 com o coronavírus, há um avanço no curto prazo da inflação. Isso ocorre porque a demanda não diminui e , portanto, no curto prazo, há menos produtos disponíveis com a mesma quantidade de pessoas querendo comprar e, logo, os preços sobem. Apesar desse efeito no curto prazo, a cadeia de produção se adapta e a situação se normaliza, geralmente, após 16 meses. O momento atual é ainda mais crítico pois contou com dois agravantes: lockdown suspendendo a produção e gerando demanda reprimida. A inflação, dessa maneira, pode vir a durar um pouco mais do que os usuais 16 meses, mas é um fenômeno de curto prazo.
Logo, concluímos esse artigo com a grande dúvida sobre quais serão os reais efeitos das políticas econômicas inéditas exercidas nos últimos tempos. A inflação está em uma crescente nos Estados Unidos, porém há motivos para crer que ela não irá acelerar muito mais. Apesar disso, o FED já comunicou ao mercado sobre suas intenções de subir os juros americanos pelo menos uma vez até o final de 2023. O que nos resta é esperar e analisar o quanto não somente o aumento no juros, como também o fim dos estímulos fiscais e monetários irão afetar a economia mundial.
Referências:
CARVALHO, JOSÉ CARLOS. Cenário Macro | Crescimento Global. In: [s.l.: s.n.], 2021.
HENNEY, MEGAN. US hiring sharply misses expectations in April with just 266,000 new jobs added. Fox Business. Disponível em: <https://www.foxbusiness.com/economy/april-jobs-report-2021-coronavirus-pandemic>. Acesso em: 1 jul. 2021.
SHELTON, JUDY. Opinion | The Fed Lacks Precision Inflation Tools. WSJ. Disponível em: <https://www.wsj.com/articles/the-fed-lacks-precision-inflation-tools-11622153546?st=p9fgnama0fxhzly&reflink=article_gmail_share>. Acesso em: 1 jul. 2021.
TAYLOR, KATE. McDonald's franchisees blame hiring challenges on unemployment benefits and say an 'inflationary time bomb' will force them to hike Big Mac prices. Business Insider. Disponível em: <https://www.businessinsider.com/mcdonalds-franchisees-blame-labor-shortage-on-unemployment-benefits-2021-5?amp&__twitter_impression=true>. Acesso em: 1 jul. 2021.
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