Autor: Ragnar Chaves
Embora amparar os necessitados seja crucial para atenuar os imbróglios sociais gerados pela crise do coronavírus, as consequências postas não têm consciência da nobreza das ações tomadas. Ainda há de se lidar com os níveis exorbitantes que alcançará a dívida pública - que saltou de 78,5% do PIB em Março para 86,5% do PIB em Julho -, além dos riscos envolvidos nesse processo. Em momentos como esse, é comum que haja interesse em apontar soluções. Iniciativas populistas e mágicas são as primeiras a serem propostas: monetização da dívida, transferir lucros realizados do Banco Central com reservas, dentre outras.
No primeiro caso, o problema é maior: monetizar a dívida envolve a compra de títulos pelo BC. Ao fazer isso e injetar liquidez na economia, a autarquia promove uma queda na taxa de juro e deixa de ter como compromisso o regime de metas de inflação, cujo principal instrumento é a SELIC. Num passado não tão distante, experimentamos a ausência de credibilidade do BC e seus efeitos, inflação descolada da meta e na casa dos dois dígitos. Já no segundo, a fim de cumprir com o regime citado, o BC enxuga liquidez por meio de operações compromissadas, que, para serem operacionalizadas, exigem aumento da dívida, como bem explicado aqui pelo economista Alexandre Schwartsman.
Desse modo, é importante discutir os maiores desafios que teremos pela frente a fim de implementar as medidas realistas e necessárias para contornar a crise que vivemos e o problema de baixo crescimento que já vivíamos antes de março de 2020, início da pandemia. O objetivo deste artigo, portanto, não é mostrar as soluções - há pessoas com muito mais capacidade tentando fazer isto -, mas sim, expor os dilemas que enfrentamos e enfrentaremos nos próximos anos.
Teto de Gastos, Renda Brasil e Dívida Pública
Desde o ano da promulgação da Constituição de 1988, escolhemos contemplar diversas demandas da sociedade incorporando-as ao orçamento público. Não cabe aqui fazer julgamentos, mas analisar os efeitos dessa escolha. Se por um lado, foi uma forma de contribuir para avanços sociais, de outro, tornou o orçamento mais engessado. O grande problema é que receitas são cíclicas, o que significa que aumentam em momentos de bonança e diminuem em períodos de retração econômica. Já as despesas, no formato em que adotamos, não são. Vale ressaltar que durante os governos do PSDB e PT, por exemplo, os gastos públicos cresceram 6% acima da inflação anualmente, em média. A questão principal é que há uma dificuldade enorme em se promover cortes de gastos quando necessário.
Nesse sentido, dado a grave crise fiscal enfrentada pelo país após a recessão que passamos durante os anos de 2014 e 2016, houve a necessidade de se conter a trajetória dos gastos, num país que não tem superávits primários, isto é, resultado fiscal antes de encargos com a dívida, desde o ano de 2013, conforme o FMI. Assim, instituiu-se uma regra fiscal com objetivo de desacelerar a trajetória da despesa: o teto de gastos. A regra é apontada por economistas como responsável, em partes pela redução da taxa de juro observada nos últimos anos, o que também tem impactos na redução da dívida pública.
O teto contribuiu para esse fenômeno ao diminuir o juro real neutro, ou seja, a taxa que não gera pressão inflacionária, conforme apontou o economista do Itaú, Pedro Schneider, em Setembro de 2019. Além da redução da SELIC, observa-se como um de seus efeitos a possibilidade de redução da dívida pública, ceteris paribus. Ainda segundo o Itaú, cada um ponto a menos de juro real médio da dívida pública reduz o gasto com juros em 0,8% do PIB ao ano, o equivalente a R$ 55 bilhões.
Embora seja apontado como responsável para redução das taxas de juros e mesmo tendo efeito sobre a dívida pública, não conseguiu mitigar totalmente outros fatores que potencializaram o crescimento da dívida pública, como se pode notar no gráfico abaixo.
Fonte: Banco Central
Projeções da Instituição Fiscal Independente mostram que a dívida pode chegar a 96,1% do PIB no final de 2020, 98,6% em 2021 e 100,3% em 2022, níveis muito acima da média dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).
A situação é problemática e os desafios são ainda maiores: o alto nível de desemprego e suas consequências sobre a sociedade levantam a discussão sobre qual deve ser o papel do Estado nesse momento, se deve continuar elevando os gastos a fim de financiar o benefício emergencial por mais tempo ou mesmo torná-lo permanente.
Estimativas do Itaú mostram o impacto de se ampliar o auxílio emergencial, com o Renda Brasil, comparando com a base do Bolsa Família, já que será uma extensão do programa já vigente, conforme mostra a tabela abaixo.
Fonte: Itaú
Não há uma definição muito clara por parte do governo em relação ao valor a ser recebido por pessoa e o alcance do programa, mas é possível que sejam 21 milhões de pessoas recebendo R$300,00. Nessas condições, o impacto do programa, anualmente, é de 42 bilhões de reais ou 0,6% do PIB, uma cifra bem considerável. Se o programa for contemplar todos aqueles já atingidos pelo atual auxílio emergencial, com o valor de R$300,00 o dispêndio será de 203 bilhões de reais ou 2,8% do PIB.
Ainda que a proposta seja uma boa forma de atingir os mais necessitados, há um grande custo fiscal num momento nada simples. Além da trajetória crescente da dívida pública, dado os elevados déficits fiscais que incorremos no passado e, principalmente neste ano (deverá alcançar 828 bilhões de reais em 2020, segundo o secretário especial de fazenda, Waldery Rodrigues) podemos ter problemas de liquidez e rolagem da dívida, com prazo cada vez menor, conforme apontado no gráfico a seguir.
Conforme aponta o gráfico, a necessidade de financiamento do governo dados os elevados gastos decorrentes do combate à crise atual têm levado ao encurtamento da dívida. No início da pandemia, em março deste ano, 21,4% da da dívida pública federal vencia em 1 ano. Em Junho, este número era de 23,3%. Isso se deve à dificuldade do governo em captar recursos com prazos mais longos, o que pode acarretar num risco de liquidez.
Além do que já foi citado até aqui, ainda há um risco inflacionário pela frente. Apesar da inflação medida pelo IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo) estar bem comportada e abaixo da meta do Banco Central (4%, com intervalo de tolerância para cima ou para baixo de 1,5%), índices como IGP-M, que é uma composição do IPCA, IPA (Índice de Preços ao Produtor Amplo) e INCC (Índice Nacional da Construção Civil), tem mostrado uma trajetória crescente, muito em função do comportamento do IPA, que reflete a alta cotação do dólar e o impacto nas commodities.
Outrossim, o preço de alimentos, que compõe o IPCA e tem peso de cerca de 20% na cesta teve alta acumulada até o mesmo de Julho de 4,10%. O índice tem sido segurado principalmente por transportes e vestuário, que em função da pandemia tiveram queda de 4,25% e 2,44%, respectivamente e têm peso de cerca de 19,5% e 4,5% no índice.
Fonte: IBGE
Uma alta de preços generalizada na economia pode levar o Banco Central a aumentar os juros a fim de trazer a inflação para meta. Desse modo, pressionaria a trajetória da dívida pública/PIB, além de tornar mais caro o financiamento dos déficits cada vez maiores do governo.
O que podemos concluir?
Os desafios são grandes e fórmulas mágicas dificilmente resolverão nossos problemas. Muitos deles já existiam antes da pandemia e tomaram uma dimensão ainda maior. O quadro social agravado pela crise colocam o teto de gastos em cheque. Devemos abandoná-lo a fim de amparar as demandas da sociedade? Embora a resposta não seja tão simples e envolva muitos dilemas, talvez o mais factível a se fazer seja seguir a PEC do teto, mas não o teto em si.
A emenda prevê sanções em caso de descuprimento da PEC - os chamados gatilhos - que vedam o aumento de salários e a criação de gastos obrigatórios. Ainda que não resolva completamente o problema, a manutenção da regra pode ter impacto de preservação das expectativas quanto a trajetória da dívida pública e juro ao reforçar o comprometimento do Estado com essas medidas e permite ao Estado uma “folga” para continuar, pelo menos num futuro próximo, amparar o mais necessitados sem perder credibilidade.
Os riscos são grandes e cada medida deve ser bem avaliada. Cabe a nós, interessados em geral pelo destino e condução da economia brasileira, nos amparar de boas ferramentas, dados e análises daqueles que melhor entendem da realidade brasileira, além de expor e pensar devidamente sobre as consequências de nossas ações.
Bibliografia:
Macro Visão, Itaú, 17 de agosto de 2020, Departamento de Pesquisa Macroeconômica do Itaú Unibanco
Relatório de acompanhamento Fiscal nº 13, Instituição Fiscal Independente
SALTO, FELIPE; PELLEGRINI, JOSUÉ. IDP - Linhas Administração e Políticas Públicas: Contas Públicas no Brasil. Saraiva.
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Déficit Primário em 2020 deve bater 828bi, estima secretário. Valor Econômico. Disponível em: <https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/07/02/deficit-primario-em-2020-deve-bater-r-828-bi-estima-secretario.ghtml>
42% do orçamento do MEC para 2021 está condicionado a crédito extra. Folha de S. Paulo. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/09/42-do-orcamento-do-mec-para-2021-esta-condicionado-a-credito-extra.shtml>
Regras permite romper Teto de Gastos sem abandonar Ajuste Fiscal Folha de S. Paulo. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/09/regras-permitem-romper-teto-de-gastos-sem-abandonar-ajuste-fiscal.shtml>
Brasil terá superávit primário apenas em 2022. Globo, 22 de out. de 2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/brasil-tera-superavit-primario-apenas-em-2022-projeta-fmi.ghtml>.
Teto de Gastos foi importante para reduzir juro real neutro, aponta estudo do Itaú. Valor Econômico. Disponível em:
<https://valor.globo.com/brasil/noticia/2019/09/09/teto-de-gastos-foi-importante-para-reduzir-juro-real-neutro-aponta-estudo-do-itau.ghtml>.
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